O julgamento realizado na 4ª feira (28.fev.2024) sobre a distribuição das chamadas “sobras eleitorais” –cálculo dos votos no sistema proporcional para se considerar alguém eleito– foi um marco importante na história recente do STF (Supremo Tribunal Federal).
Depois de vários anos unificada em torno do alegado objetivo de “salvar a democracia” e preservar o Estado Democrático de Direito, a Corte se dividiu durante um julgamento tenso e cheio de indiretas em que a ala mais política saiu derrotada.
O tribunal decidiu que é inconstitucional a regra que excluía da última fase de distribuição das sobras eleitorais partidos que não atingiram o patamar de 80% do quociente eleitoral.
Em um 2º momento, o Supremo discutiu se a decisão iria retroagir para as eleições de 2022 ou se valeria a partir de 2024. Uma ala puxada por Alexandre de Moraes defendeu que a mudança fosse aplicada já em 2022, o que mudaria a composição atual da Câmara, com 7 deputados federais perdendo os mandatos:
Alexandre de Moraes defendeu de maneira enfática que a decisão deveria ser aplicada retroativamente. O entendimento foi acompanhado por outros 4 ministros: Gilmar Mendes, Flávio Dino, Dias Toffoli e Nunes Marques.
Conforme os votos foram avançando e o andamento do julgamento se desenhava no sentido de que a mudança só teria efeito em 2024, Moraes tentou convencer os colegas do oposto e que a inconstitucionalidade da regra sobre divisão das sobras eleitorais era o mesmo que considerar que os 7 deputados federais que seriam substituídos “não foram eleitos”. De maneira fervorosa e enérgica, Moraes alertou os demais:
“Gostaria de reiterar: esse precedente é desastroso, com todo o respeito à maioria formada. Nós vamos manter 7 deputados federais que não foram eleitos. Nós todos aqui, por maioria, decidimos que eles não foram eleitos”.
O presidente do STF, Roberto Barroso, rebateu Moraes imediatamente. Em alguns instantes, os 2 falaram ao mesmo tempo, numa quase altercação.
Barroso afirmou que a regra das sobras eleitorais era válida quando os 7 deputados federais foram eleitos. Disse também que a aplicação retroativa levaria a uma interferência indevida no processo eleitoral. Lembrou ainda que os 7 congressistas foram diplomados pelo Tribunal Superior Eleitoral e que haviam tomado posse no tempo devido.
O diálogo entre os 2 foi ríspido.
Assista ao momento em que Moraes e Barroso discutem (3min11s):
A ministra Cármen Lúcia, que acumulará também o cargo de presidente do TSE, falou logo depois. Ela também se opôs à fala de Moraes de maneira dura e direta. Afirmou que considerar inconstitucional a regra que excluía partidos que não atingiram o quociente eleitoral não era o mesmo que dizer que 7 deputados não foram eleitos em 2022. A ministra considerou que seria errado invalidar os mandatos desses congressistas.
Cármen não citou nomes na sua fala, mas sua declaração foi em resposta direta à seguinte fala de Moraes: “Nós todos aqui, por maioria, decidimos que eles não foram eleitos”.
Eis o que disse a ministra:
“Só um esclarecimento: eu votei no sentido da invalidade constitucional da norma. No meu voto, eu não digo que não houve eleição de quem está na Câmara dos Deputados. Eu votei a norma, sob a égide da qual, foram considerados eleitos pela Justiça Eleitoral, diplomados e empossados. Pela nossa interpretação e julgamento, não tinha a validade que se esperava. Mas, eu não votei isso e o meu voto realmente precisa prevalecer do jeito que eu votei”.
Assista à declaração de Moraes e à resposta de Cármen (3min21s):
Até o ministro Luiz Fux, que não costuma protagonizar momentos de embate na Corte, mostrou-se incomodado com as interferências da corrente a favor de aplicar a decisão retroativamente, já em 2022.
“Vou permitir, claro, a intervenção dos pares, mas em toda a minha vida de colegiado eu nunca assisti, depois de um debate que nos dedicamos e aprontamos o voto, termos que mudar completamente aquela percepção que nós tivemos”, disse.
A discussão representa uma “ruptura silenciosa” no STF após uma prevalência de decisões quase monolíticas entre os ministros durante os últimos anos: do governo de Jair Bolsonaro (PL) até o final de 2023. A discussão durante o julgamento de 4ª feira (28.fev) indica que o momento de pensamentos blocados entre os integrantes da Corte pode estar se aproximando de uma fase crepuscular.
O grupo derrotado –formado por Moraes, Gilmar, Toffoli, Dino e Nunes Marques– é historicamente mais próximo dos políticos. Com a cassação dos mandatos dos congressistas, a intenção dos magistrados era manter uma boa relação o senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), favorito a comandar a Casa Alta a partir de 2025.
Para o Supremo, é importante ter uma relação lhana e de confiança com Alcolumbre.
O senador tinha interesse direto no julgamento porque 4 dos 7 deputados que perderiam o mandato eram do seu Estado, o Amapá. A troca beneficiaria o congressista, que contaria com a vinda de deputados politicamente mais próximos a ele e mais simpáticos ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Não aconteceu. A tese defendida por Moraes e Gilmar foi derrotada.
É de interesse do Supremo uma relação de proximidade com o próximo presidente do Congresso Nacional, já que o atual chefe do Legislativo, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), passou a ter uma relação arestosa com a Corte em 2023. Além de criticar publicamente os integrantes do STF, Pacheco também apoiou e levou adiante propostas que tinham o objetivo de limitar os poderes dos magistrados.
Ao mirar uma boa relação com o futuro do presidente do Senado, os ministros buscam proteção do que pode vir a ser a composição da Casa Alta depois de 2026.
Há um temor constante entre os ministros do STF de um recrudescimento do Senado em relação à Corte depois da eleição de 2026. Nessa disputa, serão renovados 2 terços dos 81 senadores. Aliados de Bolsonaro não escondem a estratégia de buscar conquistar muitas cadeiras em 2026 para ter maioria na Casa Alta e, assim, eventualmente propor o impeachment de algum integrante do STF.
Por 7 a 4, os ministros determinaram a inconstitucionalidade da regra atual das sobras eleitorais. Depois, votaram para definir o momento de aplicação das novas regras e decidiram que os efeitos do julgamento só passariam a valer a partir de 2024. Como presidente do Supremo, Barroso tangeu o processo para que esse procedimento fosse seguido. Mas teve participação ativa nos bastidores o ministro André Mendonça.
Eis como ficou o placar:
O ministro Cristiano Zanin não votou porque o seu antecessor, o ministro aposentado Ricardo Lewandowski, já havia elaborado e apresentado o voto.
Com o placar apertado, o julgamento significou mais do que só uma decisão sobre como calcular o excedente de votos na divisão de cadeiras na Câmara. A sessão representou um sinal –como não se via há algum tempo– de uma divisão de poder dentro da Corte.
Fonte: O poder 360
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