Tradicional canção ganhou nova repercussão nacional no reality show e foi lembrada pelo menos três vezes no maior festival de música do sul do Brasil
Além de compositor e folclorista, Antonio Augusto Fagundes (1934-2015), conhecido como Nico, atuava como advogado em Porto Alegre no começo dos anos 1980. Foi quando um colega de trabalho com uma causa a defender no Interior o indagou maliciosamente: “Nico, onde é que fica o Alegrete?”. Natural do município da Fronteira Oeste, ele filosofou: “Não me perguntes onde fica o Alegrete. Segue o rumo do teu próprio coração”. Mais de 40 anos depois, esse caminho continua sendo repetido.
O Canto Alegretense está em alta no primeiro bimestre deste ano e seguirá por um bom tempo — pode virar filme e se tornar pórtico turístico em Alegrete. A música ganhou projeção nacional com o Big Brother Brasil 24, muito por conta do fato de o alegretense Matteus entoar a canção no confinamento. Em uma prova do líder, os participantes do reality show chegaram a cantar o clássico absoluto do regionalismo gaúcho.
Ainda, o Canto Alegretense foi lembrado umas três vezes, pelo menos, no Planeta Atlântida 2024: Neto Fagundes e seus irmãos — Ernesto (bombo leguero) e Paulinho (guitarra) — apresentaram uma versão blues da música na abertura do festival; no final do show da Fresno, o vocalista e guitarrista Lucas Silveira puxou um verso relembrando quando apresentou a canção no festival em 2009; por fim, Luísa Sonza e Neto se uniram no palco para cantar o hino informal do Estado.
Desde o início, Bagre Fagundes não tinha dúvidas de que se tratava de um clássico, embora seu irmão, Nico, desconfiasse do potencial. Após responder ao colega, ele datilografou as duas frases e os demais versos em menos de 10 minutos. Originalmente, Edson Dutra (Os Serranos) foi convidado para musicar a letra, o que acabou não ocorrendo. Os versos permaneceram guardados até uma visita de Bagre, que se apossou do papel e o levou para o Alegrete.
Então, compôs a melodia em sua gaita de quatro baixos. Ele tocou a canção para Nico, por telefone, que não se empolgou: “É razoável”. Hoje, aos 84 anos, Bagre vê com muita alegria que o Canto Alegretense segue repercutindo, quatro décadas depois:
— Eu disse para o Nico que essa música iria nos imortalizar pelo tanto que havia gostado dela. Meu irmão riu de mim, brincando que eu continuava o mesmo exagerado de sempre. O tempo provou quem estava com a razão, eu acho.
Uma das primeiras apresentações da composição ocorreu em 1981, durante a 2ª Tertúlia Musical Nativista de Santa Maria. Naquele período, Bagre, Ernesto e Neto formavam o Grupo Inhanduy. A canção não pôde concorrer à premiação, pois já havia sido tocada algum tempo antes na Semana Crioula Internacional de Bagé. De qualquer maneira, a primeira gravação da faixa integra o LP do festival.
A primeira apresentação na TV foi realizada em 1983, no Galpão Crioulo, com o grupo reforçado por Paulinho no bombo leguero. Neto lembra que o segundo disco do programa (Galpão Crioulo II, de 1984) ajudou na popularização do Canto Alegretense, trazendo uma versão da música interpretada pelo cantor com parceria de Renato Borghetti.
Aliás, Neto ressalta que uma série de fatores contribuiu para a popularização do Canto Alegretense, que se perpetuou ao longo do tempo: desde o amigo de seu pai que usou a música em um carro de som para anunciar um negócio de remates, passando pela gravação de Os Serranos (Outras Andanças, 1985), que levaram a faixa para os bailes, e chegando ao Guri de Uruguaiana (Jair Kobe) com suas paródias da música nos anos 2000.
A família Fagundes estima que o Canto Alegretense tenha sido regravado mais de uma centena de vezes. Nomes de diferentes gêneros musicais do país e do mundo já interpretaram o “canto gauchesco e brasileiro”, como Alcione, Sérgio Reis, Gabriel O Pensador, entre outros. O tecladista Don Airey, da banda inglesa Deep Purple, chegou a tocar a melodia em um show na Capital. Em 1998, um CD só com versões da música foi lançado pela USA Discos.
O Canto Alegretense rodou o planeta com os Fagundes, que já o apresentaram ao público em locais como o Museu do Louvre, em Paris, e sobre gôndolas em Veneza, na Itália. Consequentemente, o rincão que inspirou a composição também celebra a música.
Quem chega ao Alegrete pela BR-290, por exemplo, é recebido com placas que expõem a letra da música. A obra é do artista local Roberto Moacir Ferreira dos Santos, mais conhecido como Caturra.
— É uma característica do alegretense de ser muito bairrista, ter esse amor pela terra — explica Márcio Amaral, prefeito de Alegrete. — As pessoas conhecem mais o Canto Alegretense representando nosso município do que o hino oficial. Tem um conjunto tanto da letra quanto da música que vai ficar imortalizado na história do nosso Alegrete.
Há um projeto da prefeitura para a construção de um pórtico na entrada da cidade. Quem chegar ao município lerá o verso “Não me perguntes onde fica o Alegrete”. Quem sair será saudado com “Segue o rumo do teu próprio coração”. O processo licitatório da obra já foi realizado, mas ainda não foi homologado.
Também existe um convite para Os Fagundes realizarem um filme do Canto Alegretense, como revela Ernesto. O projeto, ainda embrionário, misturaria elementos de ficção, documentário e musical. Sobre o que poderia conduzir o filme, o músico é enigmático:
— Só seguir o rumo do coração e o som da gaitinha do Bagre.
Enquanto isso, a projeção recente da música vai criando uma curiosidade, como observa Neto. Há um novo público querendo se aproximar do trabalho dos Fagundes.
— Cresce a agenda e a divulgação da música. E, para nosso orgulho, é a nossa cidade. É a terra que a gente gosta de exaltar, como Matteus está fazendo no BBB — pontua o cantor.
É fato que muito gaúcho repete os versos do Canto Alegretense como se fosse de sua querência. Para Bagre, esse é um dos motivos para a música ser atemporal:
— Creio que o perfeito casamento do poema com a música foi fundamental para que isso acontecesse. Assim, nosso trabalho ultrapassou as fronteiras do Alegrete, constituindo-se num canto de amor à terra.
Leia depoimento do músico, compositor e produtor cultural Henrique Mann sobre o Canto Alegretense:
“O Canto Alegretense é uma síntese do gauchismo pós-1948 (CTG 35). Um signo linguístico específico do Rio Grande do Sul, repleto de expressões indecifráveis para quem não estiver muito habituado com o falar gaúcho.
Por outro lado, apesar do aparente hermetismo, carrega também um lado humorístico que ‘brinca’ com estes aspectos, como era do caráter do Nico fazer coisas assim, com seriedade e humor. A letra foi mesmo concebida num repente, uma tirada de ‘relancina’ em seu escritório, quando perguntado sobre como chegar ‘ao Alegrete’. Em cima disto o Bagre, por conhecer bem as facetas do irmão e ter ele próprio postura semelhante, captou a intenção e desenvolveu a música com extrema felicidade em termos rítmicos e prosódicos.
Sei bem do impacto que esta composição tem sobre o público. Fui músico da noite e bailes por décadas e nem conseguiria enumerar as vezes que vi plateias levantarem-se para cantar junto, cenas arrepiantes, como parar de cantar e tocar durante o refrão e deixar o público fazer por conta própria… É uma música de grande valia para o repertório de quem trabalha nesta seara.
Mas não posso deixar de dizer: de todas as situações que me vêm à memória sobre o Canto Alegretense a mais marcante é aquela em que o Nico está na plateia a finar-se de rir em um espetáculo do Guri de Uruguaiana (meu querido Jair Kobe). É uma cena impagável, histórica e que demonstra exatamente o que digo sobre o encontro entre tradição e humor que esta canção traduz. Talvez seja este o segredo do seu sucesso avassalador. Ficará para a história do cancioneiro ‘gauchesco e brasileiro’.”
Por: gzh.com.br
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