A proposta do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para turbinar o programa Auxílio-Gás dos brasileiros prevê um repasse direto de recursos ligados ao pré-sal para a Caixa Econômica Federal sem passar pelo Orçamento, em uma operação vista por especialistas como um drible nas regras do arcabouço fiscal.
Os detalhes da medida constam em projeto de lei assinado pelos ministros Alexandre Silveira (Minas e Energia) e Fernando Haddad (Fazenda). O texto ainda passará pelo crivo do Congresso Nacional, mas já acendeu um alerta em órgãos de controle e no mercado.
A proposta prevê que o benefício, hoje pago em forma de repasse direto às famílias, possa ser concedido também na modalidade de desconto. Nesse caso, o dinheiro seria pago aos revendedores do gás de botijão, que comercializariam o item com preço reduzido.
Para bancar esse desconto, o projeto prevê uma triangulação dos recursos. Hoje, a União vende sua fatia no óleo excedente do pré-sal e recebe a verba por meio do Fundo Social, idealizado para financiar projetos de combate à pobreza e desenvolvimento de projetos em áreas como saúde e educação.
A proposta prevê uma mudança nesse fluxo. A Petrobras ou empresas privadas comprariam o óleo da União, mas efetuariam parte do pagamento à Caixa, que usaria o dinheiro para bancar os descontos no botijão de gás. O valor repassado ao banco seria deduzido daquilo que a companhia precisa efetivamente recolher ao Fundo Social.
Sob esse desenho, Silveira pretende quadruplicar o Auxílio Gás, que hoje conta com R$ 3,4 bilhões no Orçamento. A promessa do ministro é chegar a um valor de R$ 13,6 bilhões quando a ampliação estiver plenamente implementada em 2026, ano eleitoral.
Técnicos do governo que participaram da elaboração da medida reconhecem que ela gera perda de receitas da União, já que os recursos deixam de entrar no caixa do Tesouro Nacional. O projeto, porém, não trouxe nenhuma estimativa de impacto.
O argumento desses técnicos é que o texto é apenas autorizativo, e a perda de arrecadação dependerá da regulamentação e da adesão dos revendedores. Ainda assim, a expectativa é contemplar os valores no envio do PLOA (projeto de Lei Orçamentária Anual) de 2025, na próxima sexta-feira (30).
Por outro lado, há uma previsão de que parte do programa hoje bancada com recursos do Orçamento federal seja convertida na nova modalidade de descontos o que contribuiria para até mesmo abrir espaço dentro do limite de gastos previsto no arcabouço fiscal.
O envio do projeto de lei, porém, não foi unanimidade dentro do próprio Executivo. Outra ala avaliou como arriscada a decisão de propor uma medida que não só gera renúncia, mas também permite a execução de uma política pública fora do Orçamento. Essa foi também a crítica de técnicos fora do governo e de especialistas, que viram um drible nas regras fiscais.
“A operação principal é permitir que a Petrobras, em vez de pagar a contribuição devida ao Fundo Social, que é uma receita do Orçamento, transfira o dinheiro para a Caixa, sem passar pelo Orçamento, e a Caixa faz uma despesa pública, por fora do Orçamento. É claramente um caso de renúncia de receita e de despesa não autorizada no Orçamento”, afirma o economista Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper.
Ele alerta ainda que o governo não previu medidas de compensação para a renúncia fiscal, o que, em sua visão, contraria a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) e a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias). Mendes afirma ainda que a despesa fora do Orçamento infringe o princípio da universalidade da peça orçamentária, prevista na Lei de Finanças Públicas.
Técnicos do governo e de fora, que falaram à reportagem sob condição de reserva, também teceram críticas semelhantes sobre o fato de a política pública ficar fora do Orçamento.
Além disso, eles destacam que a medida foi apresentada após a Fazenda travar uma batalha no STF (Supremo Tribunal Federal) e no Congresso Nacional por medidas de compensação para a renúncia com a desoneração da folha de empresas e municípios, inicialmente aprovada sem reposição de receitas com outras ações.
Para ampliar o Auxílio-Gás nos moldes atuais, com atendimento a maior número de famílias, o governo enfrentaria restrições. A principal delas é o limite de gastos imposto pelo arcabouço fiscal, que precisa ser seguido e tem demandado do Executivo um esforço de corte de despesas.
Neste ano, R$ 580 milhões do Auxílio-Gás foram bloqueados para ajudar a equipe econômica a conter gastos e abrir espaço no Orçamento para o crescimento de despesas obrigatórias, como benefícios previdenciários e assistenciais. O valor representa quase 17% de toda a verba reservada para o programa.
Técnicos que participaram da elaboração do projeto de lei comparam a iniciativa ao programa que concedeu descontos na compra de carro popular, em 2023. Na ocasião, o governo concedeu um crédito financeiro às montadoras que toparam dar descontos pactuados com o Executivo. Os créditos seriam posteriormente usados para abater o pagamento de tributos federais.
Na visão dos defensores da medida, a lógica é a mesma: conceder um subsídio ao consumidor final, com desconto no preço de referência. No entanto, em vez de dar um crédito tributário, o governo escolheu abrir mão de receitas ligadas ao petróleo.
Desde que o programa foi anunciado, Silveira afirmou mais de uma vez que o programa seria financiado de alguma forma por verbas relacionadas ao petróleo. O texto também diz que esse financiamento precisa ser regulamentado, inclusive para estabelecer os descontos a quem participar do programa.
Em entrevista coletiva na quarta-feira (28) para detalhar a revisão de R$ 25,9 bilhões em despesas obrigatórias, o secretário-executivo da Fazenda, Dario Durigan, disse que a reformulação do Auxílio Gás não vai “de nenhuma forma” consumir os ganhos esperados com a revisão de políticas.
“A ideia é que se aprimore a política do Auxílio Gás. Há uma constatação, em especial nas áreas que tocam esse tema mais de perto, que é uma política criada pelo governo anterior que tem muito pouca efetividade. De fato, se faz uma transferência para os beneficiários, que não encontram um preço em conta do gás. A ideia é fazer um programa que seja por adesão de uma série de empresas. É um projeto de lei, não tem efeito imediato”, disse Durigan.
Segundo ele, a proposta tem compatibilidade fiscal. “No projeto de lei tem a possibilidade de entidades públicas poderem pagar direto dentro do programa, que pode ser por exemplo [operado] pela Caixa Econômica Federal. Isso com dedução do que essas entidades pagariam à União. Do ponto de vista fiscal, tem um equilíbrio entre receitas e despesas”, afirmou, ressaltando que a proposta será discutida com o Congresso.
O secretário-executivo do Ministério do Planejamento, Gustavo Guimarães, destacou a necessidade de um “ajuste natural” em decorrência da proposta. “Política é arte de fazer escolhas. As regras fiscais não impedem a proposição de novos programas e desenhos novos para a política pública, mas obviamente vai ter que equilibrar isso dentro do conjunto.”
Fonte: Cidade Verde
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