O autor tcheco naturalizado francês, Milan Kundera, escreveu em A insustentável leveza do ser, romance realista: “Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está a nossa vida, e mais ela é real e verdadeira. Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, com que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semirreal, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes. Então, o que escolher? O peso ou a leveza?”.
Se, conforme Mário Quintana, no poema O tempo, “a vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa”, para mim, já que a carga se nos impõe, só restaria optar pela suavidade para haver certo equilíbrio em nossa existência. Ou seria a amenidade resultado do encargo?: “Então considerei que as botas apertadas são uma das maiores venturas da terra, porque, fazendo doer os pés, dão azo ao prazer de as descalçar”, Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas.
É, pois, o alívio consequência da dor. O pagamento depois de um mês de trabalho, a quitação da dívida, o banho no fim do cansativo dia – tudo tem um quê de anestésico, e viver vai ficando tolerável. Essa dualidade é a compreensão que tenho embora muitas pessoas façam a simples leitura de que “Deus não nos dá um fardo maior do que possamos suportar” (Coríntios 10:13).
Respeitadas as personalidades acima e as interpretações que suas citações possam ter, convém-me, especialmente hoje, data em que eu seria promovido na polícia penal, enfatizar a importância das gotas de satisfação ante um oceano de aborrecimento.
Carreira há muito vilipendiada, o carcereiro passou a agente penitenciário e, com muita luta, envolvendo inclusive uma invasão ao Congresso Nacional, conquistou o status de policial. Ou seja, homens e mulheres – que exerciam funções de segurança pública, que executavam tarefas arriscadas, que passavam 24 horas em ambiente insalubre, que trabalhavam muito, que ganhavam pouco, que sofriam assédio moral, que recebiam ataques e ameaças de criminosos, que adoeciam física e mentalmente – não queriam tanto: apenas um pedaço de papel, que era seu lugar na legislação.
Depois de frustrar uma fuga de presos ou de debelar um motim, o servidor não espera uma estátua em sua homenagem: não lhe tirarem esse crédito já é um prêmio. Eu mesmo encontrei drogas e armas em celas e até contive um presidiário saindo em disparada, mas nem sequer um elogio recebi. Claro que havia uma satisfação íntima, e era isso que fazia todo o esforço valer a pena.
Aos olhos de muitas autoridades e da sociedade somos invisíveis. Vistos somente quando nos querem punir – já não bastasse a expiação inerente ao cargo! E apesar do excesso de atividades, da rotina exaustiva e estressante, sentimos um certo conforto ao encerrar mais um expediente – um regozijo devido ao cumprimento da missão.
Quantas pessoas não desejam riqueza, fama, poder?! Não que eu não quisesse ter facilidades. No entanto, como meu caminho é extremamente espinhoso, descansar sob a sombra de uma árvore, de quando em quando, seria, ainda que aparentemente minguado, revigorante.
Alçar um degrau dentro da instituição é o esperado por quem cumpriu zelosamente seus afazeres durante décadas. Entretanto, determinadas coisas, ao contrário do que aparentemente sugere Kundera, não dependem de nossa vontade. Nós, cidadãos, temos o condão de eleger nosso governante – e isso é democrático e lindo. No entanto não decidimos sobre o que esse governo deveria nos retribuir por nossos serviços, pelos impostos, pela dedicação, pelo sangue, pelos cabelos brancos. Teoricamente nós que mandamos – o que soa empoderador; todavia, na prática, não damos pitaco em nada que nos favoreça: tudo (ou nada) acontece conforme os interesses do mandatário.
Por fim, não nasci por eleição, também não sou pobre por predileção. Sem preferência, trabalho desde criança. Carrego incalculável peso, contentando-me, mesmo brevemente, com qualquer recompensa. E do mesmo jeito que fui inadvertidamente empurrado para a vida, serei irremediavelmente entregue à morte.
Antes, entretanto, eu quereria (se é que tenho o direito de ao menos querer) que se parasse de mentir feito Chicó – personagem de O auto da Compadecida, de Ariano Suassuna –, que se compadecesse dessa atividade penosa e se cumprisse a promessa de nos promover, permitindo que eu tenha “um descalçar de botas” e que, vivo, diferente do defunto-autor machadiano, possa escrever o desfecho dessa novela mambembe protagonizada pelo ator falaz, Sua Desgracença Governador do Estado do Faz de Conta.
Autor: Flávio de Ostanila, membro da Academia Picoense de Letras